terça-feira, 9 de novembro de 2010

O significado da papoila


Um dia de Verão em Sarajevo

No dia 28 de Junho de 1914 o herdeiro do trono Austro-Húngaro está em Sarajevo para comandar manobras militares.

Franz Ferdinand representa uma esperança credível para a renovação da velha e desgastada monarquia da Europa central. Simpatiza com as reivindicações eslavas e vê com bons olhos a concessão de mais autonomia às nacionalidades que compõem o império.

No meio da multidão que assiste ao desfile estão seis conspiradores da organização Mão Negra, treinados na Sérvia. A Mão Negra, tem como objectivo a separação da Bósnia do império governado pelos Habsburgos e a integração na Sérvia.

Durante a manhã, uma bomba é atirada para o carro do arquiduque mas falha o alvo e apenas fere dois oficiais da comitiva. Franz Ferdinand insiste em continuar com o programa previsto. Mais tarde, pede para ir visitar os feridos.

O condutor vira por engano para uma rua estreita. Por uma das maiores coincidências da história, foram ter a apenas dez metros de um dos conspiradores, Gavrilo Princip. O jovem extremista dispara duas vezes. O carro acaba por conseguir recuar mas dois ocupantes estão feridos. O Arquiduque Franz Ferdinand e a mulher, Sophie, esvaiem-se em sangue e acabam por morrer.

O Arquiduque Franz Ferdinand com a família.


O cenário
A guerra franco–prussiana de 1870 fora o último grande embate entre potências europeias. Uma guerra rápida, travada por pequenos exércitos, compostos por voluntários que escolheram uma carreira militar.

A Alemanha, estado recém-criado em redor da poderosa Prússia, saiu vencedora e recebeu os territórios da Alsácia e da Lorena das mãos de uns vexados Franceses que não esqueceram a derrota.

Desejoso de se impor no equilíbrio das potências europeias, o império de Guilherme II tinha mais ambições. A aquisição de domínios coloniais, fonte de prestígio; de bases navais de relevância estratégica e de matérias-primas; a anexação da Polónia; o aumento da sua influência na região do Báltico e aumentar o seu poderia naval de modo a poder competir com a Grã-Bretanha em termos bélicos e comerciais.

A guerra servia ainda os desejos das pequenas nações que desejavam romper com os impérios e afirmar a sua autonomia. magiares e eslavos a partir do império Austro-Húngaro, arménios e árabes no interior do Império Otomano.

Resumindo, a França cultivava o ódio pela Alemanha com base na derrota de 1870; A Alemanha invejava o poderio naval e o império colonial Britânico; A Austro-Hungria estava em tensão com a Rússia por causa do apoio destes à causa das autonomias eslavas. A Grã-Bretanha temia o aumento da influência Alemã nos mares e a sua ligação crescente com a Turquia que poderia colocar o Médio Oriente em ebulição e um inimigo forte à porta dos seus domínios ultramarinos.

Junte-se a isto uma série de pequenos conflitos locais que acenderam ainda mais as tensões entre as principais potências europeias:

* A guerra Ítalo-Turca entre 1911 e 1912 que terminou com a anexação da Líbia por parte dos italianos.

* As duas guerras do Balcãs em 1912 e 1913 que opuseram os países da Liga Balcânica à Turquia e à Albânia.

* O ultimato Austro-Húngaro à Sérvia para que esta retirasse do território albanês.

* Anexação da província turca da Trácia por parte da Grécia.

E, no entanto, no Verão de 1914, a Europa vivia um período de prosperidade. A interdependência económica revelava-se em todo o seu esplendor, uma espécie de primeira globalização ainda modesta e limitada a algumas áreas, mas incorporando as principais peças no tabuleiro de jogo das potências mundiais.

Capitais e mercadorias fluíam através da Europa e da América. Em 1893 o vapor ultrapassou definitivamente a vela como meio de locomoção nos mares.

Os acordos internacionais sucediam-se: a partilha de informações meteorológicas; a uniformização das dimensões das linhas de caminho de ferro; a divisão de frequências de rádio para a recém-descoberta telegrafia sem fios; os primeiros acordos sobre direitos de autor.

Também ao nível social as modificações assumiam grande relevância. Criaram-se movimentos internacionais com vista a regulamentar o número de horas de trabalho e o emprego de crianças.

Em 1864 surge em Londres a Primeira Internacional, em 1889 a Segunda Internacional, em Paris. Estas pressões dos movimentos de trabalhadores, que defendiam a união da classe acima dos sentimentos nacionalistas, levou mesmo a que alguns governos se antecipassem e abrissem o caminho a políticas de protecção da classe operária.

Outros dois exemplos da cooperação internacional nos anos que antecederam a Grande Guerra foram as Convenções de Geneva em 1863 e de Haia em 1893. Em ambas foram estabelecidas normas para regular o tratamento de prisioneiros de guerra, o uso de armamento químico e o estabelecimento de um tribunal arbitral para a resolução de conflitos entre nações. A maior parte destas resoluções destinadas ao esquecimento e abafadas pelo ruído das armas durante os anos que se seguiram.


Joncherry
Dia 2 de Agosto de 1914. O cabo Jules André Peugeot e outros quatro soldados do 44º Regimento de Infantaria encontram-se posicionados na aldeia de Joncherry, perto da quinta dos Docourt. Na estrada surge um grupo de cavaleiros. A forma dos capacetes não deixa dúvidas: são cavaleiros alemães que tinham atravessado a fronteira francesa e avançavam vindos da localidade vizinha de Faverois.

O cabo Peugeot tenta impedir o avanço dos alemães mas o comandante do destacamento galopa na sua direcção e dispara três tiros. Embora ferido, o francês devolve o fogo e abate o cavaleiro com um tiro no ventre.

Peugeot morre em frente à casa de Monsieur Docourt às 10.07h. O cavaleiro abatido era o Leutnant Camille Meyer, do 5º de Caçadores a Cavalo.

Os dois, tornam-se as primeiras vítimas de uma guerra que só seria declarada 48 horas mais tarde.


Um estranho Verão
O esquema de alianças europeias no início do século XX tentava cobrir diversos cenários e colocar as diversas potências ao abrigo dos ataques umas das outras:

* 1879 – Entente Cordiale (França, Grã-Bretanha e Rússia)

* 1881 – Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália)

O atentado de Sarajevo dá origem a um conjunto de movimentações diplomáticas que acabam por culminar no ínicio da guerra.

A 23 de Julho, após muitas hesitações, a Áustria entrega finalmente um ultimato ao governo sérvio. Entre os diversos pontos do documento estavam a exigência da dissolução de todas as organizações e actividades contra o império Austro-Húngaro e a criação de um inquérito judicial conjunto para encontrar e condenar os responsáveis pela morte de Franz Ferdinand.

Com apenas 48 horas para responder, a Sérvia treme e cede em quase tudo, excepto no que diz respeito ao inquérito conjunto. Mas o seu poderoso vizinho deseja a guerra. Os sérvios mobilizam o seu pequeno exército de apenas 16 divisões.

Com a garantia do apoio alemão em caso de ataque russo, o governo Austro-Húngaro declara guerra à Sérvia a 28 de Julho e inicia a mobilização. Um a um, lentamente, os restantes exércitos entram em movimento. Primeiro a Rússia, depois a Alemanha e logo a seguir a França. Ao mesmo tempo, as primeiras granadas caiem sobre Belgrado.

De todos os lados surgem apelos de última hora que tentam colocar um travão ao espírito belicoso que se apodera da Europa.

A 29 de Julho Nicolau II telegrafa a Willem II implorando-lhe que fizesse todos os possíveis para impedir a guerra. Nesse mesmo dia o kaiser, que dias antes apoiara entusiasticamente o avanço sobre a Sérvia, garante-lhe estar a fazer todos os possíveis para convencer os austríacos a negociar.

Dia 1 de Agosto, Jorge V de Inglaterra envia um telegrama ao seu primo Nicolau II da Rússia, pedindo que fosse criada uma hipótese de saída negociada. Tarde demais! Do lado do czar informam que o embaixador alemão acabou de entregar a declaração formal de guerra.

Se ao nível mais alto as hesitações e os equívocos se sucediam, nas ruas o clima era de entusiasmo e fervor patriótico. Manifestações populares de regozijo aconteceram em São Petersburgo, Viena, Berlim, Paris...

O império Austro-Húngaro, a Alemanha, a Sérvia, a Rússia e a França estão em guerra. A Grã-Bretanha tenta manter-se afastada. A Entente Cordiale com a França não a obriga a entrar no conflito, mas outro problema está prestes a juntar-se à confusão reinante na Europa.

A 2 de Agosto a Alemanha lança um ultimato à Bélgica exigindo livre passagem pelo seu território para invadir a França a partir do norte, evitando as fortificações na fronteira comum. Os belgas recusam a passagem de tropas pelo seu território invocando a sua neutralidade, consagrada no tratado de Londres de 1839. Os britânicos reagem e por sua vez enviam um ultimato a Berlim avisando-os de que a integridade territorial da Bélgica deve ser respeitada.

A 4 de Agosto, os alemães avançam pela Bélgica e a Grã-Bretanha vê-se finalmente arrastada para a guerra.

Um prisioneiro alemão auxilia um soldado britânico ferido,
a caminho do hospital de campanha perto de Bernafay Wood, após confrontos
em Bazentin Ridge a 19 de Julho de 1916, durante a Batalha do Somme.


Quatro anos depois...
Após quatro anos de conflito, a Europa está exangue.

O exército francês, cansado e desmoralizado após uma séries de batalhas que resultaram somente num número impensável de mortos e feridos, amotina-se.

Os ingleses começam a sentir dificuldades em arranjar reforços para compensar as perdas após os desastres no Somme e em Passchendaele.

A Rússia, a braços com uma violenta revolução, negociou uma paz separada e retirou-se da guerra em finais de 1917. 

A Alemanha pode finalmente concentrar-se numa só frente e lançar uma ofensiva para derrotar Britânicos e Franceses antes da chegada dos americanos em número suficiente para desequilibrar a balança.

A Kaiserschlacht começa na Primavera de 1918, com uma série de operações utilizando tácticas inovadoras de infiltração que confiam mais no elemento de surpresa do que em longas preparações com bombardeamentos prévios, como até aí tinha sido regra.

Os Aliados vacilam e os alemães conseguem o maior avanço de sempre na Frente Oeste desde o início da guerra de trincheiras. Em alguns pontos, as linhas movem-se 60kms, em direcção a Paris.

Foi nesta fase da guerra que o Corpo Expedicionário Português (CEP) se viu diante do rolo compressor da ofensiva alemã. Desgastado e desmoralizado pela falta de apoio de Lisboa, com falta de homens que compensassem as baixas e com uma escassez endémica de oficiais (grande parte foi de licença e não regressou) as tropas portuguesas recuaram em La Lys, tal como outras divisões britânicas.

Apesar das conquistas iniciais, o avanço alemão acabou por ser detido e os Aliados recuperaram a iniciativa.

Ao fim de três anos de sangrentas tentativas, os generais aliados conseguiram finalmente acertar com as técnicas correctas para romper a guerra de cerco das trincheiras.

O uso de carros de combate e aviões em número significativo e tácticas mais sofisticadas de infantaria e artilharia conjugou-se com a  chegada de um número cada vez maior de reforços dos Estados Unidos. Teve início a derradeira ofensiva da Grande Guerra.

A Alemanha esgotara as últimas forças. Sem homens e sem recursos, abandonada pelos austro-húngaros, búlgaros e turcos, o Reich entrou em convulsão, política e socialmente. O Kaiser é forçado a refugiar-se na Holanda quando a república é declarada. Um pedido formal de armistício é entregue aos Aliados.

O acordo é assinado numa carruagem de comboio, na floresta de Compiègne.

Às onze horas, do décimo primeiro dia, do décimo primeiro mês, as armas calam-se, por fim, dos campos barrentos da Flandres às montanhas junto à fronteira Suíça.

O Cenotaph em Whitehall, Novembro 2004. Foto de Chris Nyborg.


Poppy Day
O uso simbólico da papoila para homenagear os mortos na Primeira Guerra Mundial é um costume da Commonwealth Britânica que está ligado ao Remembrance Day, um feriado móvel que tem lugar no segundo domingo de Novembro, de forma a estar o mais próximo possível com o 11 de Novembro.

Em Portugal, o Dia do Armistício continua a ser comemorado, mas de forma discreta, quase envergonhada.

Continua a haver muita gente a confundir a memória dos que morreram com militarismo ou glorificação da guerra. Independentemente do que alguns sectores possam pensar, a essência de tudo isto é precisamente a oposta. É vital manter viva a memória destes acontecimentos de forma a evitar que se repitam.

A papoila foi escolhida como símbolo, não só por abundar nos campos da Flandres, mas sobretudo devido a um poema escrito pelo médico canadiano John McCrae:

In Flanders fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place; and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.

We are the Dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie,
In Flanders fields.

Take up our quarrel with the foe:
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high.
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow
In Flanders fields.