Ontem foi o aniversário da Batalha de La Lys.
A editora A Esfera dos Livros fez coincidir o lançamento de "Das Trincheiras Com Saudade", de Isabel Pestana Marques, com a efeméride. O jornal "Público", a propósito de ambos, incluiu este artigo na edição de ontem.
Ainda não li o livro, por isso sobre ele não vou abrir a boca.
Quanto ao artigo, ficaram-me algumas dúvidas. Fiquei surpreendido com umas quantas afirmações. O erro de lhe chamar "batalha de Las Lys" fez-me rir.
Aviso: A partir de agora isto só interessa mesmo a que goste de história. Não fala de mulheres nuas nem de futebol e não tem piadas. A sério, não tem.
[Citações do artigo do jornal "Público" assinaladas a bold e em itálico]
"Na historiografia europeia (...) a batalha de Las [sic] Lys nem sequer existiu."
Falso. Nem é preciso levantar o rabo da cadeira para ver a quantidade de referências à batalha na Internet. Em inglês e em francês. Possivelmente o jornalista não terá encontrado nada porque pesquisou por "Las Lys". Também poderia ter procurado por "4ª Batalha de Ypres" ou "Batalha de Estaires" designações pelas quais também é conhecida.
A designação "Batalha de Armentiéres" é menos correcta. Embora o sector seja idêntico, refere-se a uma batalha de 1914, no início da guerra, pertencente a uma fase a que mais tarde foi dado o nome de "corrida para o mar" e que levou à imobilização da guerra das trincheiras.
A batalha de La Lys foi travada como consequência do ataque com o nome de código "Georgette", que por sua vez derivou de um plano mais ambicioso chamado "George", englobado na última ofensiva alemã chamada "Kaiserschlacht".
"Do primeiro ao último momento deste período, a aventura portuguesa na guerra europeia não passou de uma série de mal-entendidos e de mitos colocados ao serviço de objectivos pouco confessáveis."
Os mitos são obviamente posteriores aos acontecimentos. É um facto que o governo da Primeira República tinha interesses egoístas na intervenção portuguesa mas o papel que esta teria na conservação das colónias africanas não é de todo um mito. Sabia-se por cá que existiria um acordo entre a Grã-Bretanha e a Alemanha para repartirem Angola e Moçambique. Tal acordo dataria de 1898 e foi reavivado em 1911. Apesar de negado por ambas potências, este facto não deixou de se juntar às razões para a nossa entrada na guerra.
Mais, não foi Portugal que entrou na guerra. É verdade que, de início, os britânicos recusaram o alinhamento nacional com os aliados mas com o passar do tempo acabaram por nos pressionar para que arrestássemos os navios Alemães ancorados em Lisboa. Tal acto levou a Alemanha a declarar guerra a Portugal.
"Chegados ao seu destino, tiveram de caminhar cerca de 30 kms, carregados com todo o equipamento de campanha, até aos seus locais de acantonamento."
E? Onde é que está o problema nisto? A guerra teve lugar entre 1914 e 1918. A mecanização dos exércitos só teve lugar de modo relevante durante a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, era perfeitamente normal marchar 30 kms, embora tenha encontrado algumas fontes que referem o transporte por comboio até Thérouane, ponto de concentração designado para o CEP.
"A falta de hábitos de higiene propiciou o alastrar das doenças e dos piolhos, sarna e outros parasitas"
Nós não seríamos os mais asseados da Frente Oeste, mas a presença destas pragas era uma constante em todos os sectores. O piolho, a sarna, o pé-de-trincheira e a ratazana eram companheiros inseparáveis de todos os soldados.
"O armamento era insuficiente e inapropriado e ninguém tinha recebido treino adequado para a guerra das trincheiras"
Por razões logísticas, todo o nosso armamento foi fornecido pelos Britânicos. Não fazia sentido estar a montar uma estrutura apenas para duas divisões, quando a já existente funcionava bem devido à experiência acumulada em mais de três anos de guerra. O equipamento era praticamente igual ao das outras forças do Império Britânico: espingardas Lee-Enfield, metralhadoras Lewis e Vickers, granadas Mills. Só os capacetes eram inicialmente de qualidade inferior (os Brodie Mark I tipo A).
Quanto ao treino, o CEP passou, tal como qualquer divisão britânica, por um período de instrução sobre ataques com gás e tácticas de guerra nas trincheiras. Nenhuma unidade chegava a França e ia directamente para a frente. Veja-se que após a chegada a Thérouane, em Fevereiro, as primeiras tropas portuguesas só entraram em linha no mês de Abril.
"(...) furiosos com as más condições e com as diferenças de tratamento entre soldados e oficiais, muitas vezes os portugueses se sublevaram, se esconderam ou fugiram."
Ao contrário do que se passava no exército britânico, que tinha instaurado um sistema de rotatividade, que significava não só a alternância entre frente, apoio, reserva e retaguarda, mas também a possibilidade de obter licenças, as tropas portuguesas foram obrigadas a uma presença quase constante ao serviço por falta de efectivos. Por outro lado, as licenças eram escassas e privilegiavam os oficiais em detrimento dos praças.
O número de oficiais que veio de licença a Portugal e já não voltou foi altíssimo, causando uma razia nos quadros dos batalhões do CEP. Pelo contrário, o número de deserções registadas entre os praças foi mínimo.
"No dia seguinte [refere-se a 10 de Abril, o dia seguinte ao início da ofensiva alemã no sector português], com a ajuda dos ingleses, começaria a recuperação."
Não foi assim que se passaram as coisas. Os alemães continuaram a avançar até ao final do mês de Abril.
Se houve um mito de La Lys, criado pelo Estado Novo para achincalhar a Primeira República, é lícito que seja desfeito. Mas substituir velhos mitos por outros parece-me apenas uma gigantesca falta de chá.