terça-feira, 20 de dezembro de 2005

O Estranho Reaparecimento do Dr. Valakion - Continuação

- Não me lembro de nada! - gritou o Doutor Valakion pela sétima vez - já vos disse vezes sem conta que dei por mim numa lixeira municipal, sem carteira e sem peúgas!

- Sim, pelo cheiro podíamos facilmente concluir que foi isso que aconteceu...mesmo que não tivéssemos sido nós a descobri-lo - o Inspector Andrade não gostava de estrangeiros. Também não gramava cães e tulipas. Baixote e gorducho, suava muito e tinha uma pedra nos rins que o fazia sofrer em quintas-feiras alternadas. A brincar - sim porque o Inspector Andrade tinha sentido de humor - costumava dizer que a sua pedra tinha sido feita na Suiça.

- O que nós queremos saber senhor Doutor Valakion, não tem nada a ver com as suas peúgas fedorentas nem com a sua carteira, embora lhe diga desde já que o facto de não saber do seu passaporte lhe vai causar problemas com o SEF. O que nós queremos saber, caro Doutor, é porque carga d'água tinha uma folha de papel no bolso do casaco onde estavam escritos os nomes de 12 ministros com uma indicação à frente de cada um onde se lia "pum!"

O Dr. Valakion começou a ter suores frios. Os olhos derivaram da mesa para a chávena de café vazia, para a cadeira, para o tecto e para a lâmpada fluorescente cheia de pó.

O Inspector voltou à carga.
- Está a sentir-se mal? - e aproximando a cara da nuca molhada em suor do Dr. Valakion, desferiu a estocada fatal num tom de voz baixinho - você está tramado...e não é por causa da falta das peúgas.

Valakion arrepiou-se. Sentiu o suor a arrefecer ainda mais em cima da sua roupa e sentiu a falta das peúgas. Pensou de repente nos pés sujos e em toda a porcaria que devia ter pisado. Sentiu nojo dos seus pés e uma necessidade incontrolável de se lavar e desinfectar. As mãos começaram a arrepanhar o tecido das calças e inconscientemente colocou ambos os pés no ar, como se qualquer movimento ou toque o pudesse conspurcar ainda mais. Por fim, arranjou forças para responder:

- Claro que me estou a sentir mal. Estou todo sujo, sem documentos num país estrangeiro e ainda por cima o senhor vem falar-me de um papel qualquer com uns nomes e umas referências infantis...

A voz calma surpreendeu Andrade. O homem parecia-lhe à beirinha de um ataque de pânico, do descontrolo total, mas a voz saíra calma e pausada.

- Infantis? Uns nomes? Você deve estar a brincar comigo! Não abuse da sua sorte. Não pense que o título de Doutor o vai safar desta alhada. Os nomes, senhor doutor, esses nomes, como disse de modo displicente, são de políticos. Ministros do governo deste país e as referências infantis foram levadas muito a sério pelos nossos investigadores mais experientes.

- Sinceramente, senhor inspector, segundo você me disse eram apenas uns puns.

Era demais para o Inspector Andrade. Nem o seu sentido de humor, reconhecido em todo o edifício e bastas vezes mencionado na sua roda de amigos, podia resistir a um achincalhamento tão leviano de todo o esforço da polícia. De frente para o odiado estrangeiro, descarregou os pensamentos até então guardados em nome do brio e do profissionalismo.

- Ouça lá ó doutor da mula russa, você não goza comigo, nem com o meu trabalho - a narigueta de poros dilatados e proeminentes pilosidades tinha descido a poucos centímetros da cara do Dr. Valakion que continuava a pensar nos seus pés descalços - se nós não o tivéssemos tirado no sítio merdoso onde estava enfiado, o mais certo era você a esta altura estar feito em "Pedigree Pal" pelos "pit-bulls" dos xungosos da zona.

O estado imundo dos pés começava a ser insuportável. Valakion contorcia-se cada vez mais na cadeira de plástico desconfortável e bamba.