domingo, 31 de agosto de 2008

Um exemplo do diálogo jornalista/leitor

A notícia no Público sobre as alegadas reduções na quantidade de combustível nos vôos da Ryanair serviu-me de ponto de partida para analisar as diferenças entre o jornalismo pré-web e pós-web e sobre o modo mais ou menos cuidado com que se produz e reproduz informação.

  • No jornalismo pré-web, as notícias chegavam ao jornalista de forma passiva (via agência de notícias por exemplo) ou activa (deslocou-se ao local, falou com pessoas, consultou fontes, etc.). O artigo era escrito e publicado em papel. Fim (algumas raras excepções seriam as cartas de leitores).
  • No jornalismo pós-web, aos métodos referidos acima, junta-se a possibilidade de recolher informação de outros media - agora, a notícia permanece relevante em termos temporais, dado o imediatismo permitido pela imprensa online. O artigo é escrito, colocado online e, eventualmente, publicado em papel. E não é o fim da história. A notícia permanece e pode ser comentada, dissecada, partilhada, reproduzida.

Voltando à notícia sobre a companhia de aviação low-cost:

Os comentários dissecam o texto: A Ryanair não voa 747s mas sim 737s; alguém pergunta se os 300kgs são um extra em relação ao combustível que é exigido pelos regulamentos internacionais; outro explica como é planificado o abastecimento de um avião; os habituais histéricos prometem não voltar a voar e há quem preveja o armagedão.

A notícia do Público foi publicada ontem às 17h35 e referia o Sunday Times como fonte. Ao consultar o site do jornal inglês foi possível verificar que o modelo referido originalmente era o Boeing 737 e que havia uma explicação mais elaborada e correcta sobre os procedimentos de abastecimento e quantidades de combustível.

A mesma notícias noutros sites, portugueses, brasileiros e espanhóis:

TSF 15h19 cita que "vários pilotos denunciaram a situação no site da empresa" e refere o modelo 747.

Aeiou 15h37, cita a TSF.

Correio da Manhã 16h31, refere que "pilotos da Ryanair denunciaram" e "não se quiserem identificar com medo de represálias" e refere o modelo 747. O erro no verbo "querer" faz parte do texto publicado no site.

IOL 18h21, cita o Sunday Times e refere o 747.

TVNet, não indica hora de publicação e cita a TSF. Reproduz a ideia de que a situação foi denunciada no site da empresa e refere o modelo 747.

Sunday Times, britânico, indica apenas o dia de publicação, 31 de Agosto e refere como fonte documentos internos da empresa a que teve acesso. Mais adiante, identifica esses documentos como um memorando interno distribuído aos pilotos em Maio.

Folha Online, do Brasil, refere como fonte um despacho da agência Efe e menciona o memorando interno da Ryanair.

O El Mundo, de Espanha, recorreu também á agência Efe mas refere o Sunday Times como origem da notícia.

A velha história de que quem conta um conto acrescenta um ponto não devia ser aplicável ao jornalismo mas, pelos vistos é.

Vejamos:

A Ryanair não opera com o modelo Boeing 747. Os meios portugueses ou copiaram uns pelos outros ou enganaram-se todos do mesmo modo.

Onde terá a TSF desencantado a informação de que os pilotos denunciaram a situação no site da empresa? Azar teve a TVNet que acabou a reproduzir os dois erros.

Há ainda outros pontos mal construídos, como a explicação deficiente do processo de cálculo e abastecimento de combustível.

Os media portugueses saem mal desta análise comparativa. Erros factuais, ausência de informação essencial para a compreensão da notícia, neste exemplo há de tudo.