quarta-feira, 16 de julho de 2008

Um bom artigo sobre uma viagem de Comboio no Alfa Pendular

Saiu no Sexta e explica o que parece ser a má gestão das linhas de caminho de ferro em Portugal.

Numa altura em que o comboio pode ganhar bastante terreno como alternativa ao automóvel as prioridades andam todas trocadas. Fala-se de TGV sem que as linhas básicas estejam a funcionar em condições.

Às vezes, as nossas elites parecem crianças com um "concentration span" muito reduzido. Olham para um brinquedo durante algum tempo, muito entretidos e de repente mudam para outro e esquecem o anterior.



O comboio afrouxou 16 vezes

Por Carlos Cipriano

O Governo travou a fundo nos investimentos previstos para a linha ferroviária do Norte. Com a alta velocidade no horizonte, o ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Mário Lino, entendeu que não se justificava continuar a modernização desta linha e mandou parar tudo. Agora, em vez de modernização, fala-se em reabilitação ? caiu o objectivo da velocidade a 200 km/h (passou para 160 km/h) e pretende-se apenas aumentar a segurança e a capacidade da principal linha férrea do país. Os Alfa Pendular jamais serão integralmente aproveitados, porque, conforme testemunhou o SEXTA, o trajecto entre Lisboa e o Porto continuará a ser um rali. O problema não é do comboio, é da linha. Já lá vai o tempo em que as locomotivas tinham dezenas de manípulos e alavancas que o maquinista domava com destreza. Hoje, o homem que leva o Alfa Pendular de Lisboa ao Porto bem se podia chamar um «gestor de condução», um pouco ao jeito dos pilotos de linha aérea, pois é a tecnologia que dita quase tudo a bordo de um comboio moderno. É meio-dia em Santa Apolónia quando a luz vermelha do semáforo dá lugar à verde e o maquinista João Reis acciona um pequeno manípulo que põe em andamento o comboio nº 125 com destino a Porto Campanhã. A composição trepida sobre as agulhas da estação, atravessa Braço de Prata e pára no Oriente, onde entra a maioria dos passageiros. São tantos que é já com um minuto de atraso que o Alfa deixa para trás as árvores de Calatrava e aproveita o primeiro troço modernizado da linha do Norte. Na Bobadela, já vai a 200 km/h. Os cais das estações passam a rasar a composição e, vista da cabina, a linha a desfilar mais parece um jogo de computador ? a ausência de vibrações dá a ideia que é a paisagem que se move e que o comboio está parado.

Acima dos 220 km/h

Dura pouco a coisa. São só dois minutos e meio em que o Alfa Pendular dá um ar da sua graça, pois a passagem em Alverca já só é feita a 140 km/h. Até ao Porto isto vai ser sempre assim. Um autêntico rali, com o comboio a acelerar e a frenar, consoante o estado da linha, com troços que estão praticamente iguais desde os anos 50 e outros que foram alvo de uma modernização que os colocou ao nível do que há de melhor na Europa. O Alfa que há pouco ia a 200 à hora é agora obrigado a reduzir para 60 km/h, pois é essa a velocidade máxima permitida junto a uma passagem de nível numa curva de Vila Franca de Xira. Depois pode acelerar até aos 120, mas logo a seguir tem um afrouxamento. Os únicos papéis que acompanham o maquinista na mesa de condução são a folha de marcha (onde estão registados ao minuto a hora de passagem em cada estação) e uns avisos entregues pelo agente da Refer em Santa Apolónia, que João Reis assinou, assim tomando conhecimento que até Coimbra vai ter 16 afrouxamentos na linha, que terá de respeitar e nos quais não poderá exceder os 100, os 80, os 60, ou mesmo os 30 km/h. Obras na via, passagens de nível ou sinais avariados ditam estes cuidados que muito aborrecem os condutores dos comboios, pois estragam a média e provocam atrasos difíceis de recuperar. Agora que chegamos ao Carregado, o Alfa vai poder mostrar o que vale. O sinal na via indica 220, mas mesmo que o maquinista o não visse, ele sabe pelo computador de bordo que o seu comboio deverá agora cumprir aquela velocidade até ao Setil. João Reis empurra o manípulo todo para a frente e o conta-quilómetros não pára de subir à medida que se sente a aceleração. A estação de Azambuja mal se avista quando é atravessada a 224 km/h. Um sinal sonoro avisa o maquinista que está a exceder a velocidade autorizada. Se a não reduzir, o comboio pára imediatamente, mas a mão está firme no comando e mantém a aceleração no limite, sem nunca ultrapassar os 225 km/h.

Inclinado nas curvas

O que é bom acaba depressa e de novo se acaba este pedaço modernizado da linha. Agora, 70 quilómetros volvidos desde que saímos de Lisboa, o veloz Alfa Pendular nº 125 aproxima-se das portas de Santarém à humilhante velocidade de 70 km/h. A linha está num estado lastimável, com travessas de madeira, e a composição abana, dá solavancos e trepida à medida que se enfia nas curvas do vale de Santarém, em cuja estação não pára. Até ao Entroncamento há-de ser sempre assim. Tão depressa a 100 à hora, como a 80, depois uns oito quilómetros a 120 km/h e outra vez 80 e 100 km/h. Em Vale Figueira a linha está em tão mau estado que a passagem é feita a 60. É a parte mais monótona da viagem. O actual Governo travou as obras da linha do Norte porque as prioridades foram todas para o TGV e um terço deste eixo ferroviário ficou assim à espera de uma nova data para a conclusão da sua modernização. Será em 2012, diz o Governo. Mas já houve tantas datas previstas... Assim, devagar e devagarinho, o pendular passa a estação do Entroncamento a 60 km/h, sem parar, mas logo a seguir já vem um bom pedaço de linha nova e até Alfarelos segue quase sempre a 190. Tal como uma moto se inclina nas curvas, também o Alfa Pendular pode oscilar até oito graus para vencer a sinuosidade da linha sem ter que reduzir a velocidade. É esta a grande vantagem desta tecnologia ? manter uma velocidade elevada numa linha convencional. Quem vai na frente nota perfeitamente que o «écrã» se inclina à esquerda e à direita e que a composição ataca as curvas de uma forma suave e elegante, sem safanões. A sensação de segurança é total e ? curiosamente ? o comboio parece mais seguro quando desliza a 200 à hora do que quando se arrasta a 80 na via ainda não intervencionada. É tempo para um café no bar. Como habitualmente, o comboio vai cheio e são muitos os passageiros que dormitam e lêem, poucos os que seguem o documentário das televisões apostas no tecto e cada vez mais os que trabalham ou vêem filmes nos seus computadores portáteis. No bar fala-se inglês e espanhol. E sente-se a pendulação. Alguém desenhou as janelas demasiado baixas, o que provoca alguma claustrofobia, por não se ter horizonte dentro da carruagem. Mesmo nos lugares sentados há, pontualmente, algum passageiro que enjoa com estas inclinações do Alfa nas curvas e contra-curvas. Outros, porém, acomodam-se e dormitam a viagem toda.

Sistemas de segurança

Quem não pode pregar olho é o maquinista Reis. Mas, ainda assim, se algo de grave lhe acontecesse, há sistemas de segurança que salvaguardam tanto uma distração como uma doença súbita. O primeiro deles todos chama-se Homem Morto e é um pedal onde o maquinista tem de manter o pé durante a viagem. E mexê-lo de vez em quando para provar que está vivo. Se o não fizer, ao fim de uns segundos toca um apito e o composição pára imediatamente. O Convel (Controlo de Velocidade) é o computador de bordo que dá indicações sobre o estado da via. O maquinista quase não precisa de olhar para os sinais porque sabe já se estes estão verdes, amarelos ou vermelhos antes de lhe aparecerem pela frente. E também aqui, se não actuar em conformidade, o comboio detecta a irregularidade e imobiliza-se. Um telefone rádio-solo mantém também o maquinista em permanente contacto com os CCO (Centro de Comando Operacional) de Braço de Prata e de Contumil, que mantêm a marcha do comboio monitorizada.

Erros «de baliza»

Coimbra é a paragem intermédia desta viagem. São 13h53. O Alfa 125 vai com sete minutos de atraso. Já recuperou três desde que passou no Entroncamento, mas a coisa vai piorar porque há afrouxamentos e porque nesta mesma estação de Coimbra os passageiros tardam em sair e entrar. De novo em andamento, o comboio apanha de novo uma linha em mau estado e é assim a saltitar que se aproxima da Pampilhosa. A partir daqui, e até Aveiro, é que pode voltar aos 220 km/h, mas logo a seguir à Mealhada o Convel avisa para reduzir a velocidade. Sem motivo aparente. João Reis obedece e explica que é um «erro de baliza». Durante um bocado o Alfa vai a 30 à hora numa linha onde podia ir a mais de 200. Depois volta a acelerar e a atingir a velocidade máxima. Mas eis que um novo erro da sinalização o obriga a frenar mais cedo antes de chegar a Aveiro. Perderam-se minutos preciosos. O maquinista liga para o CCO e reporta a situação. Já não poderá fazer muito mais para recuperar o atraso. São 14h22 em Aveiro quando devia lá parar às 14h10. Em Espinho o comboio mergulha subitamente debaixo de terra. A estação, subterrânea, é atravessada a 80 km/h. Quando emerge à superfície, o Alfa circula agora ao lado da praia e pode recriar-se a vista sobre um mar cinzento sob um céu carregado de nuvens. Segue-se o percurso mais temido dos maquinistas, sobretudo depois de Ovar. A linha, em péssimo estado, atravessa uma zona densamente povoada e com várias passagens de nível. Se há sítio onde é mais provável ocorrer um atropelamento é aqui e grande parte dos maquinistas já apanharam vários sustos. Coimbrões, Francelos e Madalena são os apeadeiros mais perigosos. Há miúdos que atiram pedras, pessoas descuidadas que atravessam a linha sem olhar. João Reis apita sucessivamente até chegar a Gaia. Depois é a travessia da magnífica ponte de S. João e uma breve incursão na Invicta do tempo do ferro, as pontes metálicas e o Douro lá em baixo. Mas não dá para apreciar a paisagem, pois mesmo na ponte o Alfa vai a 120 km/h. Afrouxa agora suavemente e em breve a composição desliza suavemente no cais de Campanhã, onde termina a sua marcha. São 14h56.