quarta-feira, 2 de abril de 2008

Passeios pedestres (ou como ficar com os bofes de fora)

A história já tem um par de semanas mas não resisto a contá-la aqui. O texto é todo criação aqui da casa, as partes em itálico são adendas referentes ao desenrolar da batalha.




A minha amiga Lena convidou-me para um passeio pedestre comemorativo dos 200 anos da batalha da Roliça (ver post anterior).

O vício da História e as recordações de algumas férias na minha infância, passadas nessa aldeia do concelho do Bombarral, levaram-me logo a dizer que sim, que ia e tal, mas sempre com uma pequena dúvida em mente. Como raio é que eu, um sedentário, amante da contemplação mística, ia meter-me numa actividade ao ar livre que, ainda por cima, terminava com um prémio de montanha de primeira categoria no alto da serra do Picoto?

Decidi mandar estas considerações às urtigas e lançar-me de cabeça.

Quando lá cheguei, confesso que a minha confiança regressou. Aquilo estava cheio de velhinhos e famílias com crianças, o percurso certamente não ia ser assim tão difícil.

Acabou por revelar-se um grupo giro, uma mistura de gente residente no concelho e sócios de um grupo de actividades ao ar livre, malta com um ar muito pro, equipado à maneira, que até levava umas varas metálicas todas xpto para ajudar a subir aos sítios. Um exagero, pensei eu, o néscio armado em bom.

De início tudo bem e a fase de arranque do passeio, até à primeira posição francesa, foi feita em velocidade de cruzeiro, em terreno plano. Isto vai ser canja, pensava eu...

Como atracção adicional, havia a presença de um senhor cheio de piada chamado François, um gaulês capaz de nos dar uma rara perspectiva dos acontecimentos do lado dos invasores.

Os Franceses invadiram Portugal em Novembro de 1807, forçando a corte a mudar-se para o Brasil. De modo a impedir o fecho do bloqueio continental e aproveitando as revoltas populares na Peninsula, a Inglaterra desembarca a 1 de Agosto de 1808, na praia de Lavos, junto à foz do Mondego, um exército comandado pelo General Arthur Wellesley (mais tarde Duque de Wellington). Reunidas em Leiria com uma pequena e mal equipada força Portuguesa, avançam sem oposição, perseguindo a divisão do General Delaborde, até perto da Roliça.

O passeio acompanhou o caminho das tropas de Laborde que, perante o avanço anglo-português, achou por bem retirar do pequeno planalto inicial para posições mais altas e mais fáceis de defender.

Atravessámos novamente a Roliça e depois a Columbeira. Nada de muito problemático.

O drama começou quando chegámos ao sopé da serra do Picoto. Ai Jesus, Maria, José, pensei eu. Isto parece alto como o caraças. Será que vamos mesmo subir por aqui, pelo meio do mato?

Pois.

Foi aqui que a minha confiança começou a desaparecer ao ritmo de cada passo. Foi aqui também que os velhinhos e as criancinhas frágeis me começaram a dar uma abada. Eles não andavam depressa mas tinham aquele ritmo certo e firme de quem está habituado a mexer o rabo ao invés de ficar sentado a ver o Dr. House.

A Lena fez como os sprinters na Volta à França quando começa a subida aos Alpes D'Huez: Encostou ao lado e disse: "vão andando meus queridos que eu a partir de agora meto o meu ritmo e chego quando tiver de chegar". Eu, continuei armado em parvo e meti na cabeça que não havia de ficar atrás dos velhinhos e das criancinhas. Lá me fiz à serra com o pensamento de que algum daqueles senhores e senhoras devia saber primeiros socorros...

Salvou-me o gesto caridoso do pessoal da organização que, a meio da subida, decidiu recriar o alto das tropas inglesas antes do ataque suicida do batalhão do Tenente-Coronel Lake.

Aquela santa gente não só me deu oportunidade de fazer um reset ao sistema cardio-respiratório como ainda presenteou a malta com garrafinhas de água, croissantezinhos com fiambre e queijo e muita fruta (incluindo as fantásticas pêras-rocha da zona). Quase chorei de emoção. Estou bem capaz de me recensear na zona só para poder votar no elenco da Junta de Freguesia da Roliça!

Ali, o nosso amigo François explicou que os soldados Ingleses largaram a sua pesada carga regulamentar e prepararam o assalto às defesas Francesas. E é nesta altura que entra em cena a figura do Tenente-Coronel Lake.

Comandante do 29th Foot, veterano das guerras na Índia, George Lake era, segundo dizem, um adepto das cargas frontais em cold steel. A baioneta usada à época pelos Britânicos, dava-lhes uma superioridade teórica, reforçada pelo intenso treino a que era sujeito aquele exército profissional. No entanto, naquele dia de Agosto de 1808, pedia-se prudência e calma, duas características ausentes da personalidade do oficial em comando do 29.

Ao invés de aguardar pela chegada das tropas nos seus flancos, decidiu atacar sozinho. Vestido com uniforme de gala (verdade ou lenda?) e montado no cavalo de um dos seus oficiais (insistiu neste aspecto mesmo depois de o primeiro animal ter sido abatido), acabou por ser atingido e a sua unidade sofreu pesadas baixas debaixo do fogo cruzado francês.

O Tenente-Coronel Lake foi enterrado ali perto e o seu túmulo, restaurado em 1903 por um grupo de oficiais do regimento, é hoje a marca mais evidente da batalha.

Após a visita ao túmulo, proseguiu a subida da serra, repetindo os passos dos ingleses que atacaram pelas linhas de água.

Recuperando a história da batalha:

Os franceses não perseguiram as tropas em fuga do 29 e a linha foi reposta com a chegada do 9th Foot. Atacados insistentemente por quatro lados e em risco de cerco pelo destacamento do Coronel Trant, o General Delaborde dá ordem de retirada. Ordeiramente, por fases e com o apoio da cavalaria, os franceses deixam o campo de batalha, cientes de terem cumprido o seu objectivo de retardar o avanço do exército Wellesley, permitindo a Junot reunir as suas tropas.


O embate decisivo teve lugar quatro dias depois, no Vimeiro.

Quem também mal sobreviveu ao dia fui eu e a Lena. Mas a paisagem do cimo da Serra do Picoto compensou o esforço. Apesar do vento. E do facto de eu não sentir os pés. E do tempo que demorei a recuperar o fôlego.

Apesar disso gostei. Já disse à Lena que se souber de outros passeios que conte comigo.

Ah e para que saibam, ambos tínhamos mesmo onde estar e só por isso é que pedimos boleia a uns senhores amigos da Lena que pertenciam à organização e descemos a serra de jipe.